10 de março de 2014

Bangkok


Pelas dez e meia da manhã deixei Siem Reap em direção à fronteira com a Tailândia. Quase que uma única recta de 150 Km em bom piso levam-nos até Krong Paoy Paet.
Passava pouco de meio dia quando aí cheguei. O homem que tratava do Carnet estava a almoçar mas dez minutos depois apareceu e rapidamente carimbou o documento. Ao chegar à secção de passaportes com a moto deparei com uma enorme fila de turistas, acabados de descarregar de uma camioneta. Um dos guardas fronteiriços propôs-me carimbar o Passaporte por seis dólares. Ofereci-lhe cinco e quando lhe passava o dinheiro para a mão surgiu o chefe que, com o ar mais natural do mundo, pegou nas notas que estavam na mão do entristecido homem, colocou-as dentro do Passaporte e partiu, regressando dois minutos depois com o carimbo de saída colocado.
Passei para a parte Tailandesa. Dois rapazes, um com os seus vinte anos e outro de uns trinta, estavam sentados por trás de uma mesa ao ar livre. Comandavam uma cancela manual que abriam e fechavam de vez em quando, não percebi bem com que critério. Carros, camiões ou pequenas motos, todos tinham que carimbar um papel e passaporte junto destes homens. No meio da mesa um cesto para as gorjetas, à vista de todos, em que quase toda a gente que por ali passava colocava ora moedas ora uma nota, neste caso retirando, pelas próprias mãos, o troco em moedas do cesto, conforme o que cada um achava justo. Os dois homens só olhavam para o cesto quando começava a ficar cheio de notas. Nessa altura o mais velho pegava no molho e colocava-as num saco que tinha ao lado da mesa.
Não senti que quem não contribuísse para o cesto fosse tratado de forma diferente. Influencia sim, teve a farda de um oficial superior a passar com um amigo, sem deixar gorjeta, que deixou os rapazes nervosos e apressados.
Tive que ali ficar à espera, durante duas horas, de um seguro que me obrigaram a fazer para a moto, por não aceitarem o internacional que trazia, e assisti em direto e a cores em como aquele dinheiro das gorjetas serviu não só para pagar a um fornecedor de Tabaco que apareceu com três pacotes de 20 maços para o rapaz mais velho como para quando ele enviou outro empregado carregar-lhe o telemóvel. O dinheiro com que paguei o seguro, que um suposto empregado da companhia veio trazer, também foi para dentro do saco azul.
Passava das três da tarde quando finalmente passei a fronteira e parti a caminho de Bangkok, a 250 Km de distancia. A estrada era boa mas, à medida que me aproximava da cidade, o transito intensificava-se até que, a uns cinquenta quilómetros, se começam a formar enormes filas que consegui ir passando mas muito devagar.
Entrei em Bangkok já de noite. É como uma cidade europeia mas mais espalhada em extensão e menos em altura. A Tailândia tem uma economia muito diferente da dos últimos países por onde passei até ali chegar. Fui ter a casa de uns amigos onde tinha combinado deixar a moto durante os próximos seis meses, até regressar à viagem. No dia seguinte, véspera de apanhar o avião para Lisboa, fiquei a tratar de lavar a moto, guardá-la na garagem, desligar a bateria e lavar fato, botas e capacete, que estavam num estado lastimoso.
Entretanto, desde o dia que passei na floresta do Cambodja estava com uma dor no ombro direito que pensei ser resultado de um desastre que tinha tido na marginal há cerca de um ano, que ainda tem dado dores, esporadicamente. Mas esta dor de agora agravava-se de dia para dia e ontem, depois do duche, reparei numa espécie de sinal, alto, que não me lembrava de ter. Tinha uma ponta solta de maneira que lhe dei um puxão forte para o conseguir arrancar. Era uma carraça, que se alimentara do meu corpo nos últimos cinco dias.


5 de março de 2014

Cambodja 2


Depois daquele dia passado na floresta, caí na cama, de rastos, às dez da noite. Acordei às seis e pelas sete estava a tomar o pequeno almoço numa das barracas da vila, ao lado de um talho de rua onde uma cabeça de vaca olhava para mim. Aqui não há pão e ovos também não se usam ao pequeno almoço. Tive que me adaptar a comer uma espécie de esparguete com ervas e sementes mergulhado num caldo quente. Não era mau. A menina ainda me propôs juntar uns pedaços de carne ou miolos de vaca àquela sopa mas preferi não arriscar.
Parti pelas oito e meia para percorrer de volta os 65 Km de estrada de terra que me tinham levado até ali. Desta vez pude rodar a 90 Km/h nas partes de melhor piso e fiz aquele trajeto numa hora. Já perto do fim, com as vibrações, soltaram-se os parafusos que prendem o vidro da carenagem e encostei numa “chafarica” de um miúdo que reparava pequenas motos, para recolocar as fixações. Uma jovem cliente, que esperava estendida numa rede presa na parede da barraca que a sua moto ficasse pronta, levantou-se quando ouviu o barulho da “Cross Tourer” a chegar.
Arranquei, já com o vidro no sítio, vinte minutos depois e apanhei a partir dali uma boa estrada alcatroada durante uns cem quilómetros e depois outros 150 Km de mau piso, com vários troços em terra batida.
Nesta zona do Norte do Cambodja não há bombas de gasolina como as conhecemos mas apenas comerciantes que, com um bidão e uma bomba manual, vendem gasolina à porta de casa ou do estabelecimento, protegidos por um chapéu de sol. Muitas vezes não é má mas mais cara que nas bombas convencionais, onde nestes países é vendida ao equivalente a um euro por litro.
À medida que rodo para sul a temperatura vai aumentando e hoje chegou aos 40º o que, mesmo sem forros no fato, dá para suar bastante. De vez em quando ponho-me em pé para o ar entrar pelo blusão.
Nos últimos cem quilómetros do dia voltei a apanhar estrada boa mas, quando estava a cerca de 60 Km de Kampong Cham, a cidade em que tinha planeado ficar, tive o meu primeiro furo da viagem. Por sorte estava a atravessar uma aldeia e quando olhei para o outro lado da rua havia uma dessas oficinas de motos locais. Parei para reparar o furo e eles estranharam o pneu ser “tubeless”, “como os dos carros”, referia o patrão. Foram a uma oficina que repara rodas de carros buscar um taco e, meia hora depois estava outra vez na estrada.
Kampong Cham é uma cidade gira, sobre o rio, onde volto a encontrar turistas.
No dia seguinte parti só por volta do meio dia para percorrer os 270 Km que me separavam de Siem Reap. Voltei a apanhar uma parte em terra batida e mais uma vez os suportes do vidro, que já estão em mau estado e não tenho para substituir, se desapertaram.
Siem Reap é fantástica, atravessada por um estreito rio, com um ambiente extraordinário. Instalei-me num pequeno Hotel, junto ao rio, cujo proprietário é um francês, filho de mãe vietnamita, sobrinho da rainha do Cambodja e casado com uma mulher local linda. Recebeu-me de forma fantástica e convidou-me para jantar com a família.
Á noite dei uma passeio a pé pela cidade. Uma animada rua com letreiros pendurados a anunciarem Pub’s Street é preenchida com bares e restaurantes cheios de turistas ocidentais, com música ao vivo em vários deles cujo som se mistura com o das bandas de rua, dando um ambiente de festa exótico ao local.
Ali a prostituição também é um dos atrativos turísticos e os homens dos táxis locais, pequenas motos com um reboque atrelado onde levam os passageiros, não se cansam de perguntar: “do you want a girl for bum, bum”?
Na manhã seguinte fui visitar a cidade velha e ao ver, da avenida de entrada, o Palácio de Angkor Wat, tive a mesma sensação de quando, há muitos anos atrás, vi pela primeira vez a imagem de Petra, na Jordania, com o sol da manhã a bater-lhe na fachada, em cima do dorso de um cavalo, ao descer o estreito desfiladeiro que ali nos leva. Sentimos uma falta de ar de encantamento por imagens que não são possíveis de reproduzir fotograficamente.
Aquele que é o maior monumento religioso do mundo foi mandado construir no século XII pelo rei Khmer Suryavarman II. Embora seja considerado um templo, na altura Indhu, era a residência do Rei. É rodeado por um enorme lago artificial em forma de quadrado e naquelas instalações, que incluíam duas piscinas em pátios interiores e jardins fabulosos, chegaram a viver 12.500 pessoas, incluindo, segundo reza a história, 18 bispos hindhus e 615 bailarinas.
Comecei a imaginar o maravilhoso que deveria ser Reinar naquela época, naquele palácio, com as bailarinas sempre a dançarem à nossa volta e os bispos a perdoarem-nos os pecados.
Fui visitar depois outras ruinas desta fabulosa velha cidade de Angkor Wat onde está incluído o Palácio Ta Prohm, considerado “World Heritage Site” pela Unesco. Esteve ao abandono durante séculos e quando o decidiram restaurar, já em pleno século XXI, optaram, e bem, por manter as seculares árvores que entretanto tinham crescido à volta e dentro das ruínas, dando-lhe um aspecto fantasmagórico, aproveitado para as filmagens de “Tomb Raider”.  


3 de março de 2014

Cambodja



Dia fantástico passado na floresta.
Ontem tinha ficado nesta vila, com as ruas em terra batida, junto a um rio. Depois de me aconselharem a não seguir viagem pelo outro lado do rio decidi ficar por aqui e, mais tarde várias pessoas me disseram-me que a estrada que pretendia apanhar estava praticamente intransponível, com grande quantidade de areia solta onde a “Cross Tourer” se enterraria facilmente.
Um miúdo veio sugerir-me uma alternativa original. Conhecia uma homem que vivia na floresta e propôs-me fazer um passeio através da densa floresta, uma espécie de “trecking” com a ajuda deste “homem da floresta”.


Achei boa ideia e, passava pouco das sete e meia da manhã quando arrancamos os dois na minha moto junto ao rio, para o atravessarmos sete ou oito quilômetros à frente. A primeira armadilha surgiu ainda nesse trajeto quando uma ponte caída me obrigou a atravessar outra muito rudimentar, estreita e de ar frágil. Esta estrada em que seguíamos era só para peões e motos pois não tinha largura para caberem carros e esta ponte não estava pensada para ser transposta por uma moto de 300 Kg. Felizmente aguentou o esforço.
A entrada para a barcaça era através de uma rampa estreita, em terra batida com areia solta e muita inclinação, com um barranco do lado de fora que acabava no rio. A coisa lá correu bem mas na saída, idêntica mas a subir, deixei cair a moto, felizmente sem estragos. Depois, no trajeto até à floresta, tive que atravessar uma ponte que tinha abatido a meio mas que continuavam a utilizar. Pedi ao miúdo para desmontar a lá passei sem problemas.
Chegámos a uma pequena aldeia na floresta com quatro ou cinco casas que não eram mais que telheiros sem paredes onde as pessoas se abrigavam das chuvas na época das monções e do sol nestes dias de calor. Um velho preparava folhas de tabaco que plantara junto ao rio enquanto a sua mulher fumava, tranquilamente, um cachimbo. As crianças da pequena aldeia, ao verem aparecer a “Cross Tourer” com um homem de capacete, devem ter pensado tratar-se de um extra terrestre e desataram a fugir assustadas. Aqui só a partir dos sete anos usam alguma peça de roupa.
Deixei a moto na aldeia e um miúdo guiou-nos, primeiro através de alguns campos de arroz e depois de floresta, durante cerca de 15 minutos, até casa do tal “homem da floresta” que vivia com uma mulher e dois filhos pequenos.
Iniciámos então a nossa caminhada através de densa floresta, onde o homem seguia à frente, manipulando uma espécie de pequena foice, com a qual ia abrindo caminho por entre a vegetação. O trajeto incluiu travessias de rios em que descalçamos os sapatos e eu também as meias, que provocaram o riso do “homem da floresta” e do miúdo que me acompanhava.  Pelo caminho passamos por várias crateras abertas pelas bombas largadas pelos americanos durante a guerra do Vietnam. Esta zona fica perto da fronteira e muitos dos guerrilheiros escondiam-se nesta floresta, razão pela qual foi tão bombardeada. O vizinho Laos, por onde passavam muitos dos abastecimentos dos Vietcongs, é considerado o país no mundo mais bombardeado de sempre, por milhar de habitantes. Durante a guerra do Vietnam os americanos descarregaram ali, em média, um bombardeiro B52 a cada 8 minutos durante dez anos seguidos, com o país a ser mais bombardeado nessa época que todos os países europeus juntos durante a segunda guerra mundial.
Passada uma hora de caminhada começámos a ouvir um barulho de veículo a desbravar caminho através da floresta. Cruzámo-nos então com um camião militar carregado de árvores ao que o “homem da floresta” fez um ar de zangado. Mais à frente encontramos várias árvores abatidas e ele parava e ficava um momento em frente de cada uma, como quem vela um morto.
Caminhávamos há três horas quando chegámos a um rio onde ficámos a tomar banho. Os meus companheiros de viagem lançaram uma rede que traziam e pescaram um peixe que assaram numa fogueira para o nosso almoço, acompanhado por arroz para eles e dois ovos cozidos para mim, que tínhamos trazido da vila.
Partimos de volta pela uma e meia da tarde. O “homem da floresta”, a galgar caminho sem sequer uma bússola, de vez em quando perdia-se mas acabava por “encontrar o norte” e, depois de passarmos por umas barracas isoladas onde mulheres descascavam arroz num almofariz, acabámos por encontrar o rio que atravessamos descalços para chegar de volta a casa dele já sem força nas pernas e com os pés a arderem. Tínhamos caminhado seis horas através da floresta.
No regresso de moto à vila da outra margem, as mesmas peripécias ao atravessar as pontes abatidas e a dificuldade do embarque e desembarque na barcaça,  quando vi a moto perto de cair ao rio com o condutor. Mas, desta vez, não houve quedas a registar.